No meu tempo era na base da palmada!
Certa vez, numa conversa sobre educação, me posicionei contra bater em crianças e ouvi de uma mãe a seguinte resposta: “É muito fácil falar quando não se é mãe! Eu mesmo apanhei e não ‘dei pra ruim’ por isso.” De fato, eu não sou mãe. Não posso falar desse lugar. E imagino mesmo que seja muito difícil manter o emocional equilibrado diante das birras, manias e travessuras dos pequenos, principalmente quando se é mãe e tem mil outras atribuições e, por vezes, estando totalmente sozinhas nessa empreitada!
Também não tenho a menor vocação para Dalai Lama, nem sou “case de sucesso” no quesito inteligência emocional e já presenciei muitas cenas de escândalo infantil em locais públicos que enlouqueceriam até mesmo o líder espiritual tibetano, imagina eu, reles mortal... E nem posso saber exatamente como agiria estando no lugar de mãe nessa hora, mas algumas certezas me movem: eu não bateria, não gritaria, não pediria para a criança engolir o choro, não ameaçaria, não ofereceria nada como moeda de troca... E do jeito que sou “manteiga derretida”, diante de uma situação dessas, capaz até de eu sentar no chão, abraçar minha criança e chorar junto com ela, implorando ao universo uma luz da Deusa Mãe... Óh céus! Educar sem violência, sem recorrer a palmada, sem dúvidas alguma, é uma escolha bastante desafiadora e eu não preciso ser mãe para afirmar isso.
Eu também já fui uma “santa” criança, que testava (inconscientemente e sem noção do perigo, claro!) os limites da paciência da minha mãe e não escapei da famigerada sandália de borracha esquentando “meu couro, meu courinho”, mas me recordo (sem muita saudade) dos efeitos físicos e emocionais disso.
Por acreditar que a transformação começa em nós, num processo de autocura, tratei logo de fazer as pazes com a minha criança interior, mas antes, foi preciso desengavetar as recordações da minha infância, tirar a poeira das boas lembranças e acolher gentilmente aquelas recordações mais doídas. E é desse lugar, de criança que foi educada na base da palmada, que eu quero falar.
Eu também “não dei para ruim”, seja lá o que isso signifique para o senso comum, mas aprendi a naturalizar, ainda criança, que a maneira mais eficiente de impor respeito é batendo e castigando. Nessas gavetas em que as memórias da minha criança estavam guardadas, encontrei uma cena em que eu estava muito aborrecida e batia no bumbum da minha boneca, supostamente por ela ter me desobedecido e como se a palmada não bastasse, ainda a coloquei de cara para a parede, sem poder dar “um pio” (ai, ai!) e no auge dos meus 9 anos a proibi de brincar na rua por uma semana!
Bem, eu espero caro leitor, que ao chegar até aqui, você esteja se perguntando o porquê de eu criar minhas bonecas de maneira tão rigorosa. E se essa dúvida se instaurou na sua cabeça, posso me atrever a dizer que andamos boa parte do caminho.
A provocação sobre educar na base da palmada, está longe ser uma conversa utópica sobre certo e errado, faça assim ou faça assado, nem tampouco pretende se tornar um manual de regras rígidas sobre como as famílias devem educar seus filhos sem agressividade, o papo aqui é muito mais sobre a cultura violenta nas relações humanas e é preciso incluir as crianças nisso. E nada mais justo do que começar apontando as nossas próprias incoerências. Lembra quando eu falei, algumas linhas atrás, sobre a transformação começar em nós? Dá um trabalhão desconstruir algumas coisas que aprendemos como certo ao longo da nossa formação como sujeitos sociais e eu, que amo flertar com a dúvida, acho que o caminho aponta para nos perguntarmos mais sobre o porquê de as coisas serem como são. Afinal, qual o sentido ficarmos estarrecidos e repudiarmos atitudes de violência que presenciamos todos os dias nos jornais contra mulheres, negros, gays e naturalizar bater numa criança quando precisamos repreender algum erro? Qual a mensagem que estamos passando ao punir com palmada a falha cometida?
Não acredito que os pais batem nos filhos por prazer ou porque gostam de ser agressivos e, como disse no início, é trabalhoso manter o equilíbrio emocional quando as crianças parecem testar nossa paciência e não colaboram da forma como gostaríamos. E nessa hora, é quase impossível lembrar que ao bater também passamos uma outra mensagem subliminar, para além da punição dolorida, de que a violência é o melhor atalho para a solução de problemas, sem contar que disciplinamos pelo medo, impondo nossa “supremacia” adulta. Lembra que eu batia nas minhas bonecas?
Desde que a infância se tornou meu objeto de estudo, compreendo a importância (e urgência) de se pensar novas formas de educar, mais positivas e que rompem com os ciclos de violência e hostilidade, racismo, machismo, homofobia e tantos outros comportamentos tóxicos e danosos que estão aí engrossando os números atuais de brutalidade e morte, principalmente de mulheres, negros e gays...
Não estou colocando toda a culpa na conta da palmada e obviamente outros fatores precisam ser considerados na formação do sujeito que se torna violento. O que eu quero é propor esse exercício de olhar as miudezas dos nossos gestos e perceber como elas podem estar passando mensagens que não gostaríamos de transmitir ou fazer perpetuar. Afinal, é a infância, a fase mais importante da nossa formação, em que os traços da nossa personalidade começam a se moldar e constituir os valores e crenças dos adultos que seremos. O que queremos legar para as futuras gerações?
O mundo está em constante transformação, será que tudo aquilo que aprendemos como “certo” lá atrás em matéria de viver e educar é mesmo o jeito mais eficaz de formar cidadãos mais equilibrados mental e emocionalmente, amorosos, autônomos, responsáveis, livres e mais conscientes do seu papel na sociedade?
Nunca é tarde para resgatar a humanidade em nós, refletir, ressignificar e mudar, se preciso for...
Por: Patrícia de Lima Gama
Quem é Patrícia de Lima Gama?
Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional pelo Centro Universitário Estácio da Bahia (2019) e Licenciada em Letras com Habilitação em Língua Espanhola pelo Centro Universitário Jorge Amado (2009), como bolsista integral do Programa Universidade para Todos (PROUNI). Possui ampla experiência na área comercial como gerente de livraria e gestão de pessoas. Atua em projetos voltados para a literatura infanto-juvenil, desempenhando ações de incentivo à leitura e produção escrita com crianças em situação de vulnerabilidade social em parceria com escolas públicas e instituições sociais. Pesquisa a brincadeira livre e os impactos da sociedade de consumo nas infâncias.